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sexta-feira, 25 de abril de 2014

No Country For Old Men (Onde os Velhos Não Têm Vez) - Cormac McCarthy [2005]


Um dos raros casos em que eu li o livro antes de ver o filme, mesmo que a adaptação, traduzida como Onde os Fracos Não Têm Vez, tenha levado um Oscar em 2007 e tenha sido feita pelos irmãos Coen. Não sei por que, esse caso eu quis ler primeiro, principalmente por nunca ter tido contato com nada do Cormac McCarthy, autor considerado pelo crítico Harold Bloom, e dezenas de outros críticos, como um dos melhores escritores americanos vivos. Harold Bloom, contudo, não gostou de No Country For Old Men, e a obra é considerada a mais acessível de toda a bibliografia de McCarthy. Devido aos elogios, comumente direcionados à prosa de McCarthy mais que as suas histórias, li em inglês, idioma original da publicação.

Llewelyn Moss é um veterano da guerra do Vietnã, com 30 e poucos anos, casado com a jovem Carla Jean. As coisas estão duras para eles no sul dos EUA, próximo à fronteira com o México, mas, enquanto Moss está a caça de um antílope, ele se esbarra com o resultado de um tiroteio recente. Corpos largados no chão, carros arrebentados, vidro estilhaçado, um cachorro morto que não se sabe de onde veio, e um homem ainda agonizando, com uma bolsa com 2,4 milhões de dólares em dinheiro. Uma das caminhonetes está com a traseira cheia de heroína, que Moss ignora, mas leva consigo o dinheiro. Enquanto isso, Chigurh,um assassino de aluguel psicopata, foge da cadeia e se encarrega de encontrar o dinheiro roubado e levá-lo de volta ao seu dono. O xerife Ed Tom Bell investiga o tiroteio e todos os crimes que se desencadeiam a partir dele, buscando tanto Moss quanto Chigurh, ao mesmo tempo em que outro assassino de aluguel é contratado para encontrar o dinheiro com quem quer que esteja com ele.

A primeira coisa que qualquer um vai reparar em primeiro contato com o livro é a quase ausência das vírgulas. McCarthy é breve e bruto, mas não perde a poesia nem nos momentos de violência mais extrema. A narração é fragmentada entre diferentes pontos de vista, principalmente os de Moss, Chigurh e Bell, mas sempre em terceira pessoa, embora haja variações sutis em cada parte da história. Moss tem uma narrativa mais agitada, apressada e tensa. Bell é cansado, mais velho que os outros e se choca com a criminalidade que parece ter tomado conta de sua terra. Chigurh é calculista, meticuloso e calmo. Wells, o segundo assassino, também tem seus momentos, mas são poucos, mais como alguém que pega o bonde andando e tenta chegar na frente. Todas essas características transpiram pela prosa do autor, que cria, com esses personagens, uma espécie de faroeste moderno, cheio de discussões morais implícitas.

O enredo não pode ser chamado de simples nem de complexo. É uma sequência de eventos com efeito dominó, a primeira peça a cair é o dinheiro roubado, o resto é causa e consequência, e Chigurh é o mais ciente de tudo isso, vivendo ao redor desse fato, de que a vida em si segue as regras da causa e consequência, e que o jogar de uma moeda pode mudar um destino.

O livro tem um ritmo poético bem fluido por causa da escolha do autor de usar mais "e" do que vírgula (coisa rara no livro). Ponto e vírgula não existe em nenhum dos textos do autor e ele se recusa a indicar diálogos por meio de aspas ou travessões. Isso já é marca registrada e ele disse várias vezes que não gosta de poluir a página com milhares de traços que não significam nada, muito menos quando a ausência deles não parece fazer falta. E não faz. Não indicaria o livro para iniciantes na língua inglesa, mas se você tem um inglês intermediário e boa interpretação geral de texto, conseguirá entender bem o texto com poucas, se não nenhuma, viagens ao dicionário. O ponto alto do livro é a linguagem mesmo, a musicalidade e o peso da oralidade da fronteira na narrativa e nos diálogos, por isso a importância de ler no original, mas, se você não sabe o idioma, a tradução publicada pela Alfaguara parece bem competente.


Quase é possível sentir o sol do deserto e a poeira e o cheiro de sangue durante a leitura do livro, realmente, talvez não seja a mais marcante das obras do autor - é muito recente para isso -, mas é um bom livro. Não estou dizendo que a leitura é agradável, pois não é. Não vou me explicar nesse ponto, pois revelaria partes do enredo que não deveriam ser reveladas até o momento da leitura, mas confiem em mim, não é um livro bonitinho para passar o tempo. É pesado, mas não por isso difícil ou desagradável de se ler. Vou repetir, um bom livro de um dos melhores escritores atuais, que vale a pena conhecer. Agora vou ver o filme.

Nota: 4/5

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Le Mépris [O Desprezo] - Jean-Luc Godard (1963)


Seguindo adiante na lista de filmes do Godard resenhados nesse blog, cheguei n'O Desprezo. Primeiramente vou explicar porque levei um ano para resenhá-lo. Pra quem não sabe, O Desprezo é uma adaptação do romance de Alberto Moravia (Il Disprezzo, 1954), que trata das ruínas do casamento de um roteirista. Queria ler o livro antes de resenhar o filme, só pra saber o quão livre é a adaptação, afinal é de Godard que estamos falando, e o cara não é famoso por seguir padrões. Não consegui, o livro é raro de achar na tradução brasileira, fora de linha desde a idade da pedra. A edição americana ainda é fácil de achar (40 conto na Cultura), mas as traduções americanas não têm bom nome. Quando leio uma obra que não está em português, é porque conheço o idioma original. Mas eu não sei italiano. Não sei o que vai ser, se caço na Estante Virtual ou se encaro em inglês mesmo. A tradução de Secret Rendezvous, do Kobo Abe (futura resenha), nem foi ruim.

Cena 1: e os investidores americanos ficaram satisfeitos.
Como no livro de Moravia, Le Mépris é um drama psicológico e existencial envolvendo a decadência do casamento do roteirista Paul (Michel Piccoli) e Camille Javal (Brigitte Bardot). Tudo começa bem, eles são felizes, então o produtor americano, Jeremy Prokosch (Jack Palance), o contrata para escrever o roteiro de uma adaptação hollywoodiana de A Odisseia, que seria dirigida pela lenda do cinema alemão, Fritz Lang (interpretado pelo próprio, já praticamente cego e aposentado). Jeremy é um homem de negócios, enquanto Paul e Fritz ainda aspiram por algum mérito artístico, normalmente reprimido pelo produtor que prefere uma adaptação menos experimental. Se a sinopse lhe está parecendo metalinguística, caro leitor, saiba que antes da bunda da Brigitte, tem uma cena que filma o set de gravação e os aparelhos enquanto eles filmam o filme, pois é, processe você a informação.

Entre as várias reuniões que seguem entre Paul e Jeremy, Paul flerta com a secretária de Jeremy, Francesca (Giorgia Moll), que mal-tratada no trabalho. E Jeremy decide que vai comer a esposa de Paul - e quem poderia culpá-lo? Então Camille chega a conclusão que despreza Paul.


Esse é um filme complexo. Queria ter lido o livro antes, volto a repetir. Principalmente porque é muito difícil encontrar informações sobre ele por aí, e olha que a obra foi muito bem vista no seu tempo, e, Moravia, um autor muito aclamado. Quis ler para poder ter uma ideia do quão fiel é o filme, mas creio que muito pouco. Na verdade, Godard não estava muito interessado no trabalho original e disse que se tratava de uma leitura boa e vulgar, para uma viagem de trem. Ele a usou, e isso é uma conclusão minha e baseada em porra nenhuma, porque ela falava justamente sobre a situação pessoal de Godard naquele momento de sua vida.


Em 1963, Godard havia acabado de se divorciar de Anna Karina (se você acompanha o blog, sabe das minhas taras por essa atriz), e isso depois de dois anos de relacionamento conturbado, com direito a traições e tentativas de suicídio por ambos os lados. Começou bem, então Anna não quis mais. Começou bem, então Camille não quis mais. Em muitas cenas, Godard fez que Brigitte usasse uma peruca morena e Paul e Camille tem longas discussões de relação, por vezes agressivas e ofensivas, cuidadosamente escritas pelo diretor, talvez para refletirem uma determinada realidade pessoal.

Isso não é tudo. Nessa época, também, Godard estava curioso para saber como seria trabalhar com um filme de alto orçamento, por isso, pela primeira e última vez, usou dinheiro de investidores americanos. Última vez porque ele odiou fazer o filme, mesmo que ele tenha se tornado seu maior sucesso comercial. Paul também foi pego pelo produtor americano e teve sua vida e sua arte arrancada de suas mãos.


Eu ter assistido esse filme há muito tempo está prejudicando essa resenha. São tantas as camadas e temas discutidos. A superficialidade da arte industrializada, o consumismo, a artificialidade do cinema (enfatizada nas cenas filmando os sets de filmagem tanto de Le Mépris quanto dessa adaptação fictícia de A Odisseia, cujos trechos são apresentados ao expectador), a sutil diferença entre ter e possuir e como é fácil deixar de ter ou concluir que nunca se teve.


Escrevendo essa resenha, e talvez por uma parcela de culpa de Bardot, senti saudade desse filme. Quero revê-lo. Por isso o leitor deve concluir que isso é uma indicação. Assista e veja por você mesmo. Mas veja com atenção e se procure nos monólogos a dois que os personagens se interpretam, mas se procurem sem medo de se encontrarem. Le Mépris é uma obra pessoal, mas não indecifrável ou autobiográfica, é um desses filmes que definem a teoria do auteur, e, principalmente, merece ser chamado de clássico hoje em dia.

Nota: 5/5