Páginas

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto (2008)


É, Mia Couto está se tornando um dos escritores atuais mais interessantes para mim. "Venenos de Deus, remédios do Diabo" é o segundo livro dele que eu leio, o primeiro tendo sido "Terra Sonâmbula" - o qual não resenhei, porque não soube como e preferi não dizer nada a falar merda -, e, embora eu não queira me adiantar aqui, foi um daqueles livros cuja leitura flui quase que sozinha.

A história se passa em Vila Cacimba, no Moçambique, onde Sidónio Rosa, português, vem servir de médico. Na Vila, contudo, ele trata em especial de um senhor, Bartolomeu Sozinho, mecânico naval aposentado e que vivia de cama, em estado terminal. O velho é casado com dona Munda, e os dois vivem brigando, cheios de rancor um pelo outro. Só que Sidónio tem outro motivo para estar lá, além da medicina, ele tem a memória da filha desse casal, a desaparecida Deolinda, que ele conheceu - no sentido bíblico - em Lisboa, mas que o deixou ao voltar para casa. Se mete na história também o corrupto administrador da Vila, Suacelência, inimigo de longa data de Bartolomeu, cuja participação nos fatos é duvidosa - logo explicarei esse trecho.

"O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso."

A poesia em prosa do Mia Couto é genial. Aprendiz declarado de Guimarães Rosa, ele consegue criar uma linguagem própria, típica do Moçambique, cheia de poesia e mágica, para pintar sua terra sofrida. Não tem como não se prender pela narrativa tão misteriosa. 

A narração, em si, quase não se mete na história. Descreve cenários, aponta gestos, mas sempre que pode dá espaço ao diálogo. São os personagens que regem o enredo de verdade, o narrador está lá apenas para inserir melhor o leitor, mesmo assim, muito pouco, pois nada é confiável em "Venenos de Deus, remédios do Diabo" (viram o que eu falei da participação duvidosa, falei que ia me explicar, tá aí). Aos poucos vão se revelando mentiras sobre a vida de Munda e Bartolomeu, sobre Suacelência, Deolinda, e até Sidónio, embora de longe o mais inocente do livro, tem seus segredos.

"O velho Bartolomeu vai trocando os pés para esconder um buraco na peúga. Até no morrer ele era minucioso. Um esgar a proteger-lhe os olhos do fumo do cigarro, o reformado mecânico inspira e geme por turnos.
- Vê estas olheiras? Já são maiores que a cara inteira. É fígado, o fígado já me chega aos olhos.
O fígado, para ele, não é um órgão. É um fluido que circula pelas entranhas. À porta da morte, a pessoa não passa de um saco de bílis.
- E depois nunca mais saio deste maldito barco.
- Refere-se aos enjoos?
- Aos enjoos, a esta porcaria deste balanço, parece que ainda estou na merda do navio."

Difícil falar sem revelar grandes pedaços da história. E o melhor mesmo é encarar essa leitura às cegas, esperar que tudo vá se revelando e ir se deixando conduzir pela poesia. Por outro lado, isso empobrece a resenha. No entanto, tendo dito isso, se o papel da crítica é só apontar ao seu leitor se ele deve ou não ler determinada obra, vai por mim e leia "Venenos de Deus, remédios do Diabo". É um romance belo e perfeitamente construído, digno de cada um dos elogios que recebe.

Nota: 5/5 

Trechos retirados do primeiro capítulo, disponível para leitura aqui:
http://www.companhiadasletras.com.br/trecho.php?codigo=12649

Nenhum comentário:

Postar um comentário

caixa do afeto e da hostilidade