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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Eles Eram Muitos Cavalos - Luiz Ruffato (2000)


Eu admito, era verdade quando disseram que esse livro era difícil. Levei quase um mês para ler essas 150 e poucas páginas, sempre com muita atenção, tentando não perder nada, e quase mais um outro mês para pensar no que escrever nessa resenha. E agora que eu comecei a escrever, chego a conclusão que não faço a menor ideia do que dizer, porque é um livro que, por mais que eu o descreva, a ideia que o leitor da resenha formará, não vai chegar nem perto da realidade. Mas vou tentar mesmo assim, mesmo que você não consiga entender bem o que eu estou querendo dizer, talvez eu consiga te despertar a curiosidade para experimentar esse livro - que é meu objetivo, afinal de contas.

Bom, eis que surge minha primeira barreira. É nesse parágrafo que eu passo uma sinopse da obra, mas essa daqui não tem sinopse nem na contracapa. Pra começar, o livro é descrito como um romance (até ganhou um prêmio de melhor romance em seu ano de lançamento), mas ele não segue de fato essa estrutura, e o próprio autor, Luiz Ruffato, reconhece isso. 

"Um rato, de pé sobre as patinhas traseiras, rilha uma casquinha de pão, observando os companheiros que se espalham nervosos por sobre a imundície, como personagens de um videogame. Outro, mais ousado, experimenta mastigar um pedaço de pano emplastrado de cocô mole, ainda fresco, e, desazado, arranha algo macio e quente, que imediatamente se mexe, assustando-o. No após, refeito, aferra os dentinhos na carne tenra, guincha. Excitado, o bando achega-se, em convulsões.
"

Esse é um livro de fragmentos, mosaicos, tendo como tema em comum a cidade de São Paulo. Começando por previsão do tempo e seguindo em formato de pequenas peças narrativas, que variam entre a prosa comum, a poesia, a prosa poética, a carta, a prosa em fluxo de consciência, até mensagens deixadas em uma secretária eletrônica; todas com suas formas de variações linguísticas, sendo essas o vocabulário da favela, ou dos imigrantes, ou dos ricos, cada um à sua maneira individual, tão individual quanto os mosaicos em si, que não insinuam qualquer interligação além do fato de acontecerem na mesma cidade.

"A vizinhança espreguiça-se

                                                   uma discussão, logo abortada

                                                   uma porta que se fecha

                                                    um rádio ligado

                                                   cachorros que latem

                                                   a porta de aço descerrada da padaria

                                                   passos rápidos na calçada

                                                   um bebê que esgoela

                                                   uma sirene, longe “Polícia?”

                                    o ônibus encosta, os passageiros apressam-se, arranca

e eu decidi que não quero mais essa vida pra mim não não quero

(O marido, impaciente, “ Vou acabar perdendo a hora” ,

Mas...

cansei nada vale tanto sacrifício trabalhar trabalhar trabalhar pra quê? a gente quase não se vê mais não sai pra lugar nenhum quanto tempo tem que você nem me procura  
acende outro cigarro, levanta-se, caminha na direção da mulher, [...]"

Os temas também são diferentes, tentando cobrir toda a variedade contida em uma cidade do tamanho de São Paulo. Vai da prostituição (sendo por histórias sobre prostitutas até anúncios em jornal) até uma lista dos livros presentes em uma estante qualquer. Cada um desses textos tem uma personalidade, um ritmo próprio e as loucuras narrativas, apesar de assustarem no começo, tornam tudo muito mais interessante e amplo para interpretação.

"A velha, esbugalhada, tenaz grudada na poltrona número 3 da linha Garanhuns-São Paulo, não dorme, quarenta e oito horas já, suspensa, a velocidade do ônibus, Meu Deus, pra que tanta correria?, a conversa do motorista com os colegas colhidos asfalto em-fora, Meu Deus, ele não tá prestando atenção na estrada!, devota, que a viagem termine logo, reza, nem ao banheiro pode, fica balangando sobrecabeças, e, alcançando o fedor do cubículo no rabo do corredor, nada adiantaria, embora a bexiga espremida, embora o intestino solto, Meu Deus!, só se alivia nas paradas, findo o sacolejo, E agora?, Tá perto?[...]

 
Tudo que dizem sobre esse livro ser uma obra experimental e difícil de ler é a mais pura verdade. Isso não significa que seja incompreensível ou que exija um doutorado em literatura para conseguir chegar ao fim, pelo contrário, a linguagem é simples e extremamente popular, justamente para emular a voz das pessoas no cotidiano, o único "problema" é o formato das narrações, que variam e brincam com as regras literárias. Para alguns, leitores mais inexperiente talvez, não vai ser nem um pouco agradável. Mas, se você é como eu e gosta de parar para interpretar as coisas, é uma leitura perfeita, só não comece a ler esperando um romance.

4/5

Obs.: os trechos presentes nesta resenha fazem parte do livro e servem apenas para que o leitor tenha uma impressão visual do material em questão.


4 comentários:

  1. Venho querendo ler O Inferno Provisório do Ruffato, mas o primeiro volume praticamente não existe mais em lugar algum pra vender. Fiquei com a vontade só. Acho que vou encarar o Eles Eram Muitos Cavalos, até porque o Luiz tá vindo pra Fliporto aqui em Olinda este ano e eu não quero perder a oportunidade de conhecê-lo e ganhar um autógrafo.
    Enfim, fiquei interessada neste livro. Já tinha lido uns comentários não tão bons sobre ele e acho que aqui descobri o motivo: a dificuldade. Entrou pra lista.

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    1. Também queria Inferno Provisório, mas são 5 livros difíceis de se achar. E sim, muitos comentários negativos sobre esse livro são por causa da dificuldade. Mas não é só isso, muita gente pegou o livro esperando uma história com começo, meio e fim - independente da ordem desses fatores. Não tem. São só fragmentos não relacionados.

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  2. Não conhecia esse livro, mas pelo que vc disse, não vou ler tão cedo, pois com o final do ano chegando, provas finais, ando sem tempo pra ler, por isso tudo que leio é rápido e fácil, pra acabar logo. kkkk
    Mas vou dizer, fiquei curiosa.

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    1. Esse é um livro melhor para ser lido com tempo livre, se não, não dá certo.

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